Marcelo Spalding
Para quem gosta ou estuda a língua portuguesa, Lisboa é uma cidade particularmente interessante. Afora estátuas como a de Eça de Queiroz, livrarias como a Bertrand (a mais antiga em funcionamento no mundo, desde 1732) e a enorme mistura de falares lusos, com a convivência de brasileiros, moçambicanos, angolanos, portugueses, etc, a Casa Fernando Pessoa e a Fundação José Saramago são daqueles lugares obrigatórios e inesquecíveis.
Em texto para meu livro Viagens, Crônicas e Descobertas já escrevi sobre a Casa Fernando Pessoa, então agora vou tratar da Fundação José Saramago, cujo museu ocupa boa parte da icônica Casa dos Bicos em Alfama, um dos bairros mais antigos e charmosos de Lisboa. Embora a Fundação tenha sido constituída pelo próprio escritor em 2007, o Museu da Fundação foi inaugurado na casa apenas em 2012, dois anos após seu falecimento.
Tanto leitores de Saramago como escritores irão se encantar com os manuscritos, originais, obras inteiras com marcas de revisão do autor, fotografias com personalidades das mais diversas presentes no Museu. Saramago teve tempo de organizar seu material ao longo dos anos, sabia o valor que teriam após sua morte, pois foi um homem reconhecido em vida, único autor de língua portuguesa vencedor do Prêmio Nobel de Literatura.
Não surpreende, portanto, que haja tantos objetos de valor, tanto material para crítica genética, tanto registro da exitosa carreira do escritor, inclusive a medalha do Prêmio Nobel. Como destaques eu citaria a biblioteca pessoal do escritor, incluindo obras em várias línguas, e uma recriação do primeiro escritório onde Saramago escrevia, com máquina de datilografia, óculos e caneta originais. Além, claro, de horas de vídeos que evidenciam a importância social do escritor, que esteve diante de personalidades importantes e influenciou no debate público durante toda sua carreira.
Atração à parte é a loja/livraria do piso superior, em que diferentes edições dos livros de Saramago estão expostos, evidenciando a robustez de sua obra de quase 50 títulos. Além dos livros, há diversos itens de papelaria, lembranças criativas, conteúdo multimídia e algumas edições exclusivas, como uma reprodução integral da versão datilografada original de Claraboia, com cerca de 245 folhas contendo também anotações manuscritas do autor. Segundo o vendedor, foram produzidos apenas 500 exemplares desta edição, e uma delas adquiri quando fui à Fundação (em breve darei texto sobre ela).
Ao final da visita ao prédio, fomos convidados a ir até uma frondosa árvore em frente à Casa dos Bicos sob a qual estão as cinzas de Saramago. Não tem como não se emocionar e parar alguns instantes diante da árvore para reverenciar o escritor e a literatura.
Português da pequena Azinhaga, Saramago ficou mundialmente conhecido após o Nobel de 1998 e através de uma obra densa e sólida que o autor tornou-se uma quase unanimidade entre os críticos e acadêmicos brasileiros, com traduções em diversas línguas e elogios até do exigente e liberal Harold Bloom.
Em As pequenas memórias, um dos raros livros em que fala de si, ainda que obliquamente, revela-se filho de um casal humilde, que vai aos dois anos para Lisboa onde muda-se “dez vezes em dez anos”. Menino apartado dos livros, filho de mãe analfabeta, irá alguns anos depois provocar intelectuais do mundo todo criando uma linguagem erudita, sem marcas de diálogo nem pontos de exclamação ou interrogação, um narrador intruso, irônico e prolixo para representar uma visão de mundo crítica do seu tempo, da sua nação, da sua história.
Ateu fervoroso numa nação católica, pintou um dos mais belos retratos de Cristo humanizado em O Evangelho segundo Jesus Cristo. A obra, publicada em 1990, é o aprofundamento de uma revisão histórica do papel da Igreja já iniciado em Memorial do Convento, de 1982, um dos primeiros romances do autor a serem lidos no Brasil e que trazia uma sagaz revisão histórica lusitana.
Crítico social num país de forte nacionalismo, criado num governo de longa ditadura, derrubou Salazar com gosto e paciência no célebre conto “Cadeira”, do livro Objecto Quase. Ousou, ainda, colocar seu país à deriva em Jangada de Pedra, ironizando e questionando a identidade nacional.
A Casa dos Bicos é uma atração à parte. Monumento Nacional desde 1910, foi construída em 1523 a mando de D. Brás de Albuquerque, filho natural legitimado do segundo governador da Índia portuguesa. Sua fachada está revestida de pedra aparelhada em forma de ponta de diamante, os “bicos”, uma clara influência renascentista italiana. Com o terremoto de 1755 a casa foi parcialmente destruída, tendo desaparecidos os dois últimos andares da construção. Apenas em 1983, por iniciativa do comissariado da XVII Exposição Europeia de Artes, Ciência e Cultura, foi reconstruída e foi reposta a sua volumetria inicial (foram acrescentados os dois andares que haviam desaparecido na tragédia).
No térreo da casa, antes de acessarmos o Museu da Fundação José Saramago, estão expostos vestígios históricos da cidade, com trechos da muralha fernandina e moura, cetárias romanas (tanques usados na salga de peixes, como o garum) e estruturas de diferentes épocas que mostram a evolução urbana local.
Sua localização também é privilegiada, pois fica no coração da cidade, a 400 metros do impressionante Arco da Rua Augusta e da famosa Praça do Comércio, a 500 metros da Sé de Lisboa e a 800 metros do Castelo de São Jorge, todos pontos obrigatórios para quem vai visitar a interessantíssima capital portuguesa.
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